segunda-feira, 22 de março de 2010

Cabo Verde: a fragilidade de um paraíso

Um governante prometeu que faria destas ilhas secas «o Japão do Atlântico»; mais recentemente, um alto responsável considerou Cabo Verde «o farol de Àfrica».

A basofaria do cabo-verdiano é, como se sabe, um mecanismo de auto-compensação. Vai daí, exageramos: mau grado a miséria ostensiva (jovens a vasculhar lixo)  e a insegurança crescente (tendência para um homicídio por semana na Cidade-Capital), não hesitamos em proclamar que vivemos num «paraíso».

De há uns anos para cá, vimos propalando sucesso por esse mundo fora, mas a profunda desigualdade social, a pobreza extrema e o elevado nível de desemprego existentes dizem-nos coisa muito diferente: 35 anos depois da proclamação da independência, Cabo Verde permanece muito dependente do exterior e pobre. Apesar dos avanços registados, o país tem um futuro incerto..e a miséria atrás da esquina.

Um sucesso relativo com futuro em risco

No ano do seu 35º aniversário como República, Cabo Verde tem, naturalmente, motivos para celebrar.

Recuamos aos anos noventa para assinalar a Constituição da República, a nossa eleição para o Conselho de Segurança das Nações Unidas e a assinatura do Acordo Cambial com o escudo português. Hoje o país é membro da Organização Mundial do Comércio, acordámos uma parceria especial com a União Europeia e somos financiados pelo Millenium Challenge Account (MCA).

Notável. Para além disso, a NATO realizou no nosso país um exercício com 6 mil homens (Junho de 2006) e a ONU promoveu-nos a País de Desenvolvimento Médio (PDM). Simplesmente espectacular, para um pequeno estado de 500 mil habitantes.

Convém, contudo, relativizar.

Da parceria especial se sabe que está fora de questão a nossa entrada para União Europeia. Somos chamados a contribuir para a segurança internacional e enquanto mantivermos acordos de patrulhamento internacional conjunto e caminharmos no sentido de uma cooperação estreita com a NATO e com as polícias europeias, temos a nossa parte cumprida, no essencial. O acesso especial a fundos europeus para a Macaronésia e a livre circulação para os nossos passaportes, são as contrapartidas da União Europeia, a que, negociando bem, poderemos vir a ter direito.

Do MCA se sabe que mais do que um prémio à boa governança e ao bom governo, trata-se de um instrumento estratégico dos Estados Unidos para a penetração em zonas de interesse. Sentimo-nos eufóricos, com alguma razão, uma vez que os montantes disponibilizados superam as contribuições da União Europeia. Mas a Mauritânia recebeu quatro vezes mais e não se pode dizer que seja um grande exemplo de boa governança.

A ONU transformou-nos em PDM ou, mais correctamente, em País de Rendimento Médio; mas fê-lo contra a nossa vontade expressa. Com base na gestão da ajuda externa e num esforço de crescimento económico, atingimos dois critérios de transição para PDM: o per capita e o índice de desenvolvimento humano; mas não atingimos o critério da vulnerabilidade económica. E assim, com um índice de vulnerabilidade económica 30% abaixo do limiar requerido, fomos promovidos sem mérito absoluto.

O nosso rendimento per capita ultrapassa os 3.400 dólares (INE), mas cerca de 40% da população vive abaixo do limiar da pobreza (idem). Apresentamos um índice de desenvolvimento humano assinalável, mas a desigualdade social é profunda: apenas 1% da população concentra em si 47% da despesa per capita.

Temos uma esperança de vida de 67 anos para o homem e 75 para a mulher; mas a nossa dívida externa equivale a mais de 50% do PIB (55% em 2002); e o nosso PIB depende de transferências dos nossos emigrantes, que tendem a diminuir: 16% do PIB em 1995, 10% em 2004.
Produzimos sómente 10% dos cereais de que necessitamos e as exportações cobrem apenas 6% das importações.

A instabilidade da produção agrícola coloca Cabo Verde num angustiante 1º lugar, isto é a pior posição, de entre um total de 128 países. Por causas naturais a nossa área cultivável é inferior a 10%.; mas essa área vem diminuindo por obra das próprias populações que, com espantosa irracionalidade, vêm retirando areia das praias, salinizando as terras agrícolas próximas do mar.

Quanto à taxa de crescimento, afora os 10% de 2006, resultantes do exercício da NATO, a nossa taxa média anual situa-se abaixo dos 6%, número próximo dos 5,2% registados, de 1980 a 1990 (Michel Lesourd).Nos anos 2003 e 2004 registámos taxas inferiores à média dos anos oitenta (4,7 e 4,4%, respectivamente, fontes oficiais); e para 2008/2009, anos de incidência de uma grave crise mundial, há quem estime o regresso aos 4%.

Quando ouvimos que Cabo Verde pode ser equiparado a este ou aquele país, mais desenvolvido, ficamos impressionados com o excesso de entusiasmo. A verdade é que somos um país altamente dependente da ajuda externa. Os investimentos no país são financiados em 80 a 90% por recursos externos, dos quais 40% são empréstimos.

À luz dos números, não se pode imaginar Cabo Verde como farol de Africa. Vimos formando licenciados que não encontram emprego (centenas, segundo tese de mestrado); temos dezenas de milhares de jovens no desemprego, mas falta-nos mão-de-obra qualificada para sectores-chave como o turismo, a construção civil e as comunicações.

A fragilidade deste nosso “paraíso” é consequência de factores naturais, mas também da má governação.Fazemos uma aposta  quase exclusiva no sector terciário e olhamos com alguma displicência para o sector primário que é onde se concentra o maior número de pobres: a população rural comporta mais de 60% dos 173 mil pobres do país. Atribuímos ao turismo o papel de motor da economia, mas descuramos o abastecimento dos hotéis, com produção agrícola interna ( deixando sem soluções consistentes a qualificação dos produtos e os transportes marítimos).


Temos um êxodo rural crescente e uma urbanização descontrolada. A população da Praia aumentou 82% de 1980 a 2000 e 125% de 1990 a 2005!. As oportunidades concentram-se cada vez mais nos centros urbanos e afuniladamente na capital do país, agravando-se deste modo os desequilibrios regionais e potenciando a pressão social sobre os fracos recursos.

Temos um desemprego elevado:17% segundo o Governo (24% em 2005) e a rondar os 30% segundo a oposição; o sub-emprego chega a aproximar-se dos 70% (2002, Michel Lesourd) e a criminalidade aumenta 5,7% ao ano (Site do Governo).

Criminalidade e desestruturação da família

A criminalidade cresce em gravidade, sendo hoje conhecida a existência de gangues que disputam bairros e assassinos profissionais que executam contratos. Mau grado algum aumento de eficácia do sistema de segurança, a situação piora. Comparando 1996 e 2006, o número de crimes registados aumentou 77% ( site do Governo).

Investimos no ensino e na formação profissional, mas o abandono escolar aumenta (no EBI 6,4% em 1990 e 7% em 2003; nos liceus, de 4,4% em 2000 para 16% em 2003).Apesar das boas intenções, a escola torna-se cada vez mais desinteressante.Uma das causas do abandono escolar é o trabalho infantil. Rapazes e raparigas são obrigados pela família a acumular actividades escolares à tarde, com trabalho infantil de manhã (fonte REJOP, 2009) e segundo um conhecido antropólogo, 40% das crianças que trabalham acabam por abandonar a escola.

Pode-se explicar o avanço da criminalidade com a penetração do crime internacional organizado, nomeadamente, do tráfico de droga; mas um factor decisivo vem sendo ignorado: a desestruturação da família e a sua relação com o número cescente de jovens em conflito com a lei.

Em estudo realizado junto de jovens em conflito com a lei, 70% dos inquiridos revelaram ser oriundos de famílias desestruturadas (Min.Justiça).Somos um país em que 44% dos agregados familiares não têm uma figura paterna presente; e 36% dos agregados familiares chefiados por mulheres vivem abaixo do limiar da pobreza.

Os nossos “thugs” começaram por ser relacionados com alguma forma de revolta face à miséria e à desigualdade social e de auto afirmação (vagamente orientada pelo “thug live code” de Tupac Shakur); mas hoje em dia eles são fundamentalmente conectados com assaltos à mão armada, venda de droga, receptação de produtos roubados, contrabando de armas e vendetas.E o sensacionalismo dos media não distingue o “thug” que não é bandido, nem o bandido que não é “thug”, o que acaba por agravar o quadro percetível.

A criminalidade vem sendo analizada de modo tendencialmente integrado, mas sem que a desestruturação da família seja claramente discutida como factor potenciador da delinquência juvenil. Em matéria de família, opta-se por uma abordagem assistencialista às mulheres-chefes de família e pela tese do machismo omnipresente e que tudo explica(tese esta que, em última análise, é ela própria uma forma encoberta de machismo, pois que menoriza a mulher, acabando por ignorar as opções conscientes, certas ou erradas, da própria mulher).

O actual Governo tem mais ministras do que ministros. Trata-se de um indicador interessante; mas mais do que de um record mundial de mulheres no Governo, o país precisa de políticas que protejam a família nuclear, universalizem a educação e a qualificação profissional das raparigas, combatam o trabalho infantil e a prostituição e desencorajam fórmulas degradantes de ascensão social da mulher.

Ainda com relação aos “thugs”, espanta como gente responsável insiste  em instrumentalizar ou em desvalorizar a imagem de Amilcar Cabral, retirando à juventude referências próximas em que se inspirar.E depois lamentamos que a nossa juventude se reveja em rappers famosos, oriundos do mundo do crime ou em gente nossa que exibe viaturas topo de gama, de proveniência duvidosa.

Hoje mais do que nunca, a fragilidade do nosso “paraíso” interpela a sociedade e em particular a classe política.

Espera-se dos partidos que sejam capazes de apresentar soluções realistas, consistentes e sustentáveis, para os graves problemas do país, nomeadamente, a pobreza e o desemprego. Face aos constrangimentos crescentes da nossa economia, importa ter em conta a realidade específica da nossa terra e reconhecer o muito que há por fazer.

O país precisa de um discurso político que ponha de lado a auto-louvação, a fuga em frente e as propostas destinadas a iludir o eleitorado.Sob pena de, ignorando o agravamento crescente dos nossos problemas, acordarmos um dia num país inseguro.

sexta-feira, 17 de abril de 2009

Guiné-Bissau: a caminho da estabilidade

“A Guiné-Bissau é um estado falhado”. “Justifica-se, com urgência, uma intervenção militar estrangeira”. Estas teses vêm sendo defendidas por algumas entidades e, no essencial, traduzem a impaciência da comunidade internacional, face à violência recorrente, no país. Mas em boa verdade, elas têm pouca razão de ser.

Um “estado falhado” não teria realizado como realizou as últimas eleições legislativas, de Novembro de 2008. Essas eleições decorreram em clima de calma, tiveram uma participação de 82% do eleitorado—a mais elevada de sempre e foram consideradas um bom exemplo para o continente africano (ver
http://www.crisisgroup.org/).
Uma intervenção militar ocorre em casos extremos. Segundo o artigo 25º do Protocolo aplicável da CEDEAO, (cfr
http://www.ecowacs.org/) uma intervenção militar, no território de um membro, pode ter lugar em casos de agressão, conflitos entre dois estados membros, ameaça de desastre humanitário, violação massiva dos direitos humanos ou derrube de um governo democráticamente eleito.Nada que se aplique à situação vivida na Guiné Bissau. Já a União Africana, no artigo 4º do Protocolo aplicável (cfr http://www.aficanunion.org/) prevê o direito de intervenção num estado membro, em caso de crimes de guerra, genocídio ou crimes contra a humanidade. Mas, mais uma vez, não se está perante um dispositivo que abrange o que se passa na Guiné Bissau.
Por conseguinte, não haverá, no futuro imediato, uma intervenção militar, a não ser que, por razões que não descortinamos, venha a ser discutida uma solicitação expressa do poder guineense. Uma questão diferente é o envio de especialistas militares para apoiar o processo de reforma das Forças Armadas. Isso vem acontecendo normalmente, no quadro da cooperação bilateral e poderá ser incrementado no futuro próximo, assim as autoridades guineenses o entendam.

MAIORIA HISTÓRICA E ESTABILIDADE GOVERNATIVA
Mau grado a natureza extrema dos últimos actos de violência, há razões para acreditar que a Guiné-Bissau está a caminho da estabilidade. Pela primeira vez desde que a Guiné-Bissau adoptou o sistema multipartidário, em 1994, um partido detém uma maioria parlamentar de mais de 2/3 dos lugares: 67 em 100 (contra 62 em 100, do PAIGC de Nino Vieira, em 1994). O partido vencedor, o PAIGC de Carlos Gomes Junior, está, deste modo, em condições de aprovar todas as medidas legislativas que achar por bem; e pode, inclusive, mudar a Constituição, alterando o regime.
Segundo analistas, o povo votou fundamentalmente no líder do PAIGC, Carlos Gomes Júnior.Tratou-se de um voto baseado em critérios de competência, em substituição da tradicional “legitimidade histórica”.Carlos Gomes Júnior trabalhou nas finanças do Estado e no Banco Central e provou a sua competência nos 17 meses em que foi Primeiro-ministro, antes das presidênciais de 2005. Conseguiu assegurar o pagamento dos salários da função pública (tarefa complexa no país) e reactivar as relações com o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, postas em causa pela presidência de Kumba Yalá (2003-2005). Esta votação foi aliás protagonizada por uma nova geração de eleitores, pouco impressionados com a legitimidade histórica de políticos, oriundos da luta armada. Cerca de 40% dos eleitores tinham entre 18 e 30 anos, isto é, adquiriram capacidade eleitoral no meio de uma atribulada “segunda gestão Nino Vieira”, (ano 2005 e seguintes), ou acompanharam, frustrados, as várias crises da “primeira gestão Nino Vieira”, (1980-1999).
No cenário de desejada estabilidade, resultante das legislativas, são assassinados o Presidente Nino Vieira e o General Tagme Na Waye e é agredido o antigo Primeiro-ministro, Francisco Fadul. Estes acontecimentos configuram crimes que devem ser investigados pelas entidades competentes. Podem justificar ajuda técnica estrangeira nas investigações, desde que solicitada; mas não são razão suficiente para uma força militar multinacional.
O Governo de Carlos Gomes Júnior tem, óbviamente, tarefas difíceis a enfrentar. No imediato, deverá mobilizar, junto da comunidade internacional, cerca de 173 milhões de euros para cobrir o déficit de 81% do Orçamento do Estado, aprovado recentemente; e ainda 3 milhões de euros, para custear as legislações presidenciais antecipadas, de 28 de Junho, próximo. O Orçamento aprovado visa satisfazer duas necessidades vitais, para a estabilidade: o pagamento dos salários da função pública e o pagamento dos salários dos militares. De recordar que, à data das eleições legislativas de Novembro transacto, os trabalhadores da função pública tinham vários meses de salário em atraso. Ainda no imediato, Carlos Gomes Júnior deve enfrentar um imperativo incontornável: o diálogo para a reconciliação. Terá de dialogar com os militares, com as diferentes facções internas do PAIGC, com todos os partidos da oposição e com a sociedade civil, incluindo, os sindicatos, a classe empresarial, os líderes religiosos, os líderes locais, etc (cfr. Princípios operacionais do processo de paz in
http://www.wanep.org/”). Uma atenção especial deverá ser dedicada ao diálogo com a comunidade internacional, com destaque para os principais doadores (União Europeia, BAD,Banco Mundial e FMI) mas também com atenção particular a interlocutores bilaterais como a Espanha, os Estados Unidos e a Itália, assim como para os gestos de solidariedade cada vez mais consistentes do Basil, de Angola e da Nigéria.Nessa linha de raciocínio um papel especial caberá ao Fundo de Consolidação da Paz, constituído pelas Nações Unidas e ao Grupo Internacional de Contacto-GB, que, de modo inovador, conseguiu estabelecer um mecanismo de concertação regular entre a CPLP e a CEDEAO.
No curto prazo, o Governo enfrenta desafios altamente complexos: a reforma das Forças Armadas e o combate ao narcotráfico.

PENSÕES DIGNAS E SUSTENTÁVEIS PARA MILITARES
Na mesa-redonda de Genebra, em 2006, o Governo apresentou aos doadores um Plano de Reforma do Sector de Defesa e Segurança, orçado em 184 milhões de dólares. Os doadores preferiram adiar a ajuda. E a recente mesa-redonda da Praia (20/21 de Abril ), sobre o mesmo Plano, não acertou montantes de ajuda.
Feito um primeiro recenseamento dos militares (uma condição prévia para o financiamento da reforma do sector), ficou-se a saber que as Forças Armadas da Guiné-Bissau apresentam um total de 4500 efectivos, 80% dos quais são graduados (oficiais e sargentos). A tarefa primeira que se impõe é, por conseguinte, promover a passagem gradual e voluntária de cerca de 2/3 dos graduados à situação de reforma e, com recurso ao Serviço Militar Obrigatório, restabelecer-se a estrutura hierárquica normal.
A passagem dos militares à reforma é uma tarefa que exige sustentabilidade financeira.Os militares aceitarão a reforma, desde que se estabeleçam pensões dignas e se garanta a regularidade do pagamento dessas mesmas pensões, para um período de 5 a 10 anos. De notar que por acção da Nigéria, que cedeu 2 milhões de dólares e do Brasil, que disponibilizou apoio técnico, foi lançado um projecto-piloto de formação profissional de militares, orientada para a geração de rendimentos. Mas ciente de que a questão central é a sustentabilidade das pensões, a CPLP vem propondo a criação de um Fundo Internacional para Pensões de Reforma (cfr. Declaração Final da Reunião de Ministros da Praia, de Março último).
Outra medida importante é a adopção de legislação que fixe o período de serviço militar em 14 a 18 meses, redefina o total dos efectivos globais, estabeleça normas de progressão na carreira, introduza remunerações atraentes para os postos do Quadro Permanente e reoriente a actividade das Forças Armadas. O Serviço Militar Obrigatório é importante para a normalização da estrutura, mas também para a diversificação étnica dos efectivos. Quanto ao total dos efectivos globais, ele deve ser estabelecido de modo a assegurar um mínimo credível de capacidade de defesa, assim como uma capacidade operacional de luta contra o narcotráfico. Nesse sentido, as taxas para o cálculo dos efectivos globais (militares por habitante ou por km2) devem ser aquelas que forem consideradas necessárias aos objectivos estratégicos do país;elas não devem ser subordinadas às taxas dos vizinhos que, convém não ignorar, invadiram a Guiné-Bissau em 1998/1999.
A reorientação das Forças Armadas deve ser tarefa central da reforma da instituição; e a luta contra o narcotráfico será, seguramente, uma das missões principais das novas unidades militares. Caberá às Forças Armadas, resultantes do processo de reforma, assegurarem, em permanente coordenação com as Polícias, o patrulhamento sistemático das 40 ilhas dos Bijagós, das 26 pistas de aviação, dos 4 portos e gares marítimas, dos dois aeroportos e da enorme extensão das fronteiras terrestres; missão complexa-quiçá "sui generis"-que exige efectivos militares qualificados, bem equipados e suficientemente motivados.

PATRULHAMENTO MARÍTIMO CONJUNTO COM PAÍSES DA NATO
Na Conferência de Lisboa, em fins de 2008, foi apresentado aos doadores um Plano Operacional de Combate ao Narcotráfico, orçado em mais de 19 milhões de dólares. Mas os doadores concederam apenas 6.7 milhões, isto é, cerca de 30% do montante.Conclui-se que, por alguma razão, o texto não terá merecido suficiente adesão.
Este Plano Operacional suscita, na verdade, algumas dúvidas. Desde logo pelo seu carácter demasiado circunscrito, em contraste com o elevado montante solicitado. A luta contra o narcotráfico terá melhor sucesso no quadro de uma estratégia integrada que inclua, não apenas o narcotráfico, mas todas as formas de crime organizado, existentes no país. E a implementação de uma tal estratégia não deve estar dissociada de actividades convergentes, de nível sub-regional. Conviria adoptar-se um Programa Integrado de Luta Contra o Narcotráfico e o Crime Organizado, que inclua projectos contra o tráfico de armas, a criminalidade violenta e a lavagem de capitais, sem excluir medidas contra o terrorismo, que, como se sabe, beneficia de financiamentos oriundos do narcotráfico.
No teatro operacional, o vazio é normalmente ocupado. Daí que faz pouco sentido concentrar actividades em “países-piloto”; importa, pelo contrário, adoptar-se um Plano sub-regional, (emanado do Plano da CEDEAO), que inclua também o Senegal (responsável em 2007 pela maior parte da cocaína apreendida). Este plano sub-regional deve constituir-se em Anexo do Plano Integrado, nacional.
A Guiné-Bissau pode tirar proveito da experiência de patrulhamento marítimo conjunto, que envolve meios miltares de Cabo Verde e de países da NATO e destina-se a reduzir o tráfico de cocaína, proveniente da América do Sul. Este patrulhamento conjunto é considerado, pelos analistas, a principal medida de combate ao narcotráfico na sub-região e deve ser estabelecido como elemento base do Programa Integrado.
De realçar que a Guiné-Bissau vem ganhando valor estratégico. A acrescentar às reservas de bauxite, junta-se agora o petróleo; e no ano passado o país foi refúgio de terroristas islâmicos, provenientes da Mauritânia. Nesse quadro, surge a visita recente da Comandante Adjunta do Africom (Comando Africano para a África, sediado nos Açores), um dado importante a ter em conta.
Recomenda-se ainda uma assistência técnica internacional melhor direccionada e mais coordenada, de preferência na modalidade “One UN”. A assistência das Nações Unidas, em matéria de narcotráfico e crime organizado, deve confinar-se ao mandato: a divulgação das Convenções aplicáveis, a assistência na adequação da legislação nacional, o apoio na formação relacionada com as matérias das Convenções e a assistência com técnicos internacionais, de reconhecida competência. A experiência indica que a aquisição de equipamentos (como viaturas, botes pneumáticos ou lanchas, radares, rádios, computadores, etc) deve ser conduzida directamente pelo Governo, mediante concurso nacional ou internacional, conforme os montantes envolvidos. Igualmente, não faz sentido que uma Agência das Nações Unidas, mandatada para lidar com textos do direito internacional, se desdobre em actividades de construção civil, remodelando prisões.

GUINÉ-BISSAU NAÇÃO GLOBAL
O país caminha para a estabilidade. Mas o processo de estabilização pode fácilmente ser posto em causa por um vírus altamente nocivo: a manipulação étnica. Com efeito, a chamada “balantização” da política guineense vem favorecendo a desestabilização. Nino Vieira esteve relacionado com manipulações de origem étnica, ainda em 1985, quando um grupo de personalidades balantas foi fuzilado, com destaque para o comandante Paulo Correia; e Nino Vieira voltou a estar ligado ao assassinato de balantas, na guerra de 1998/1999. Kumba Yalá, o seu sucessor eleito, ficaria também suspeito de manipulações étnicas, no conflito que o opôs ao Brigadeiro Ansumane Mané.
A verdade é que uma população dividida em 20 a 30 grupos e sub-grupos étnicos é muito vulnerável à manipulação étnica; e na Guiné-Bissau constitui atractivo especial para manipuladores o facto da etnia balanta representar mais de 80% dos efectivos militares. Mas a guerra de libertação foi conduzida sem que a manipulação étnica tivesse tido expressão de maior. E isso aconteceu porque as diferentes nações da Guiné-Bissau souberam reunir-se numa “nação-global”, em torno de um objectivo—a independência. Hoje, finda uma era, de crises centradas na figura de um líder controverso, é tempo para que a “Guiné-Bissau Nação Global” se reúna de novo à volta de um objectivo: a estabilidade.
Na referida mesa-redonda de Genebra, em 2006, o país solicitou uma ajuda de 538 milhões de euros (cerca de 2-3 vezes a média do seu Orçamento, nos útimos três anos), sendo parte para a redução da pobreza e parte para a reforma do sector da segurança (cfr
http://www.worldbank.org/). A comunidade de doadores engajou apenas 262 milhões, para o Plano Estratégico Nacional para a Redução da Pobreza, adiando a questão da segurança. Mas mesmo esses 262 milhões tiveram, até 2008, um desembolso muito reduzido, a rondar os 20%, (cfr Embaixador Apolinário de Carvalho, in http://www.cplp.org/).
Estão agora reunidas as circunstâncias para que os desembolsos prossigam, no pressuposto de que os políticos e os militares guineenses demonstrem, com actos concretos, a sua determinação em corresponder aos desafios da estabilidade governativa, respeitando o sentido do voto popular, expresso democráticamente. A situação exige de alguns sectores políticos e militares guineenses uma mudança clara de comportamento. Hoje mais do que nunca, a aposta na divisão e na violência configura, em definitivo, uma aposta absolutamente desvantajosa para todos.

NOTAS FINAIS
Primeira: se até agora muita coisa falhou, com os mesmos interlocutores internacionais, importa alargar-se o leque e atrair novos interlocutores; segunda: o problema do país é essencialmente político, pelo que a abordagem política deve sobrepôr-se aos procedimentos burocráticos; terceira e parafraseando Amilcar Cabral: por maior que seja o envolvimento dos actores externos, a verdadeira solução para os problemas da Guiné-Bissau só pode ser encontrada pelos próprios guineenses.
Praia, Abril de 2009